sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O derretimento e o gelo da vizinha

Caloreba do cão! A gente nem lembrava que não tinha geladeira lá pelos idos dos meados dos sessenta. Não dava tempo! A diversão era muita! Mas agora, lembrando, veio a imagem da panela de alumínio brilhando cheia de gelo suando. Ela vinha recheada de satisfação. Afinal, a vizinha era gente boa. Gostosona ela era responsável pela refrescância da moçada! Qual era mesmo o nome dela? Regia. Sim, que diabo de nome quente! Morena, coisa e tal...Uma vez me mostrou uma coisa muito estranha. Já havia visto outras coisas. Era o tal. Seguia os matadores de passarinhos, atiava fogo no mato, assustava mulher grávida com espada de são jorge amarrada na ponta imitando cobra... Mas aquilo era diferente. Deu um susto! Fiquei um tempão para elaborar para que servia aquela coisa demonstrada.Certa noite acordei suando, pensava e rolava outra vez tentando pegar o sono e coisa. Como se pudesse fazer isso dormindo... A coisa estranha mostrada foi dita para não ser revelada nunca! Sendo assim, fica esse meu segredo. Cá para nós, a coisa era mesmo a coisa mais bela do mundo para um menino . Ainda continua sendo.
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CONTEXTO QUE ME ENQUADRO

“A Raça dos Desassossegados ”

À raça dos desassossegados pertencemos todos, negros e brancos, ricos e pobres, jovens e velhos, desde que tenhamos como característica desta raça comum, a inquietação que nos torna insuportavelmente exigentes com a gente mesmo e a ambição de vencer não os jogos, mas o tempo, este adversário implacável.
Desassossegados do mundo correm atrás da felicidade possível, e uma vez alcançado seu quinhão, não sossegam: saem atrás da felicidade improvável, aquela que se promete constante, aquela que ninguém nunca viu, e por isso sua raridade.
Desassossegados amam com atropelo, cultivam fantasias irreais de amores sublimes, fartos e eternos, são sabidamente apressados, cheios de ânsias e desejos, amam muito mais do que necessitam e recebem menos amor do que planejavam.
Desassossegados pensam acordados e dormindo, pensam falando e escutando, pensam ao concordar e, quando discordam, pensam que pensam melhor, e pensam com clareza uns dias e com a mente turva em outros, e pensam tanto que pensam que descansam.
Desassossegados não podem mais ver o telejornal que choram, não podem sair mais às ruas que temem, não podem aceitar tanta gente crua habitando os topos das pirâmides e tanta gente cozida em filas, em madrugadas e no silêncio dos bueiros.
Desassossegados vestem-se de qualquer jeito, arrancam a pele dos dedos com os dentes, homens e mulheres soterrados, cavando uma abertura, tentando abrir uma janela emperrada, inventando uns desafios diferentes para sentir sua vida empurrada, desassossegados voltados pra frente.
Desassossegados desconfiam de si mesmos, se acusam e se defendem, contradizem-se, são fáceis e difíceis, acatam e desrespeitam as leis e seus próprios conceitos, tumultuados e irresistíveis seres que latejam.
Desassossegados têm insônia e são gentis, lhes incomodam as verdades imutáveis, riem quando bebem, não enjoam, mas ficam tontos com tanta idéia solta, com tamanha esquizofrenia, não se acomodam em rede, leito, lamentam a falta que faz uma paz inconsciente.

Desta raça somos todos, eu sou, só sossego quando me aceito"


Martha Medeiros