Figura esvaziada de Hitler. FONTE:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/figura-esvaziada-de-hitler
Figura esvaziada de Hitler
Mostra na Alemanha levanta a questão se regimes de exceção representam anseios da sociedade
Francisco Carlos Teixeira da Silva e Karl Schurster
A constante preocupação com a identificação das especificidades e diferenças nacionais para explicar os regimes que participaram da Segunda Guerra Mundial nos aproximam do uso da história comparada. Um exemplo disso está posto na antiga tese que explicava o nazismo pelas “peculiaridades alemãs”,sonderweg, o chamado “caminho especial” da história e desenvolvimento alemão, que se preocupou mais com o período imperial do que propriamente com o Terceiro Reich. De acordo com esta interpretação, o nazismo foi um fenômeno único derivado do legado peculiar do Estado autoritário prussiano e do desenvolvimento ideológico alemão, mas sua singularidade se deve, sobretudo, ao personagem Hitler, sendo impossível ignorá-lo, subestimá-lo ou substituí-lo. Esta preocupação, exposta por parte da historiografia sobre a ditadura alemã durante a Guerra Fria, limitou as explicações sobre o nazismo ao Estado e as Instituições, tornando embaçada a visibilidade sobre a efetiva participação do povo alemão durante o regime. Mesmo quando se falou na chamada Historikerstreit (disputa dos historiadores) gerando um grande e importante debate acerca do lugar que ocupa o Terceiro Reich na história alemã (1983-1986), a centralidade do debate estava voltado para a Hitler. O que a exposição “Hitler e os alemães” traz de mais importante não é uma análise dos processos de fascistização da sociedade mediante as ações do Estado Nacional-Socialista, mas, sim a proposição de um processo de fascistização comandado e assumido pela própria sociedade.
Entendendo que uma compreensão mais profunda sobre o funcionamento da ditadura nazista levaria a uma responsabilização da população alemã sobre o sistema e suas atrocidades, parte da historiografia alemã, durante a Guerra Fria, referendou o uso do conceito de totalitarismo. Mesmo sendo um conceito pouco utilizado na Alemanha, o totalitarismo ficou marcado como conceito fundamental na explicação do nazismo e também da União Soviética sob o comando de Stálin. Durante o período da Guerra Fria, uma revisão do nazismo representava não apenas uma querela entre historiadores, mas trazia para o debate uma questão de caráter moral. Revisar o passado, onde a complexidade deste sistema transcenderia as noções tradicionais de entendimento do funcionamento do Estado e da sociedade, seria facilmente considerado como uma banalização da natureza cruel e desumana do regime nazi.
Se entendermos a memória com um lugar de embate, de luta pela legitimação de uma interpretação que se institui como hegemônica, a história do Terceiro Reich apresenta duas visões no pós-guerra bastante significativas: uma memória da República Federal e outra da República Democrática. Para a República Federal, compreender ou aceitar o recém-passado alemão estava ligado a formação de uma consciência política do novo país e a partir daí de superação deste passado. A vertente interpretativa da República Democrática apoiou-se largamente na Internacional Comunista que entendia o nazismo como o mais chauvinista e imperialista elemento do capital financeiro. Na República Federal a marca central das análises defendia a tese de que a sociedade alemã tinha sido vitima de Hitler e seu sistema, enquanto que na República Democrática a questão girava em torno de uma memória de resistência, onde a população durante a guerra teve um papel fundamental na luta contra o nazismo e na libertação da Alemanha do Nacional-Socialismo.Segundo o professor Ian Kershaw, uma interpretação do nazismo deveria abarcar a fusão de três dimensões explicativas: uma de caráter histórico-filosófica, onde a questão fundamental seria a natureza do nazismo; uma política-ideológica, onde o regime, suas instituições e ideologia racial estariam no cerne do debate; e, por fim, uma dimensão moral que estaria ligada ao tratamento dado ao tema no pós-guerra e, especificamente, o que envolve a repressão e o genocídio durante a vigência do regime. Compreender o nazismo através de teorias explicativas ainda esbarra no problema enfrentado quando nos deparamos diretamente com os fatos, que, em certa medida, parecem tornar nossas explicações mais frágeis. Mesmo que o verbo compreender tenha um significado ambivalente, quando se trata de ditaduras, podemos rechaçar e seguir compreendendo o fenômeno que não deve em nenhuma hipótese ser entendido como um lapso momentâneo da razão.
Trailer de "A fita branca", longa-metragem de Michael Haneke
Na exposição “Hitler e os alemães” existe uma gradação muito clara de “fascinação” (Faszination) e de “Cooperação” (mitmachen) até a aprovação (“billigen”) dos próprios crimes do nazismo, bem como de oposição e resistência (fatos diferenciados) e que implica em plena consciência dos contemporâneos de Hitler sobre o fenômeno que vivenciavam, bem como sua natureza violenta e a compreensão do alcance criminoso do nazismo. O pretenso poder de Hitler foi, desta forma, preencher as expectativas e esperanças pré-existentes do povo alemão, não sendo ele mesmo o “autor” ou “produtor” de tais expectativas. A própria aceitação, com entusiasmo, frieza ou simplesmente oportunismo, do conceito de ‘comunidade do povo’ por parte da sociedade alemã implicava na cooperação com o nazismo. Esta noção, conforme construído sob o nazismo, teria em seu núcleo uma promessa real de violência.
A vigência das noções decorrentes da “comunidade do povo” – tais como a pureza do sangue ariano, a exclusão de deficientes e de “diferentes” de todo tipo, a substituição dos conflitos de classe pela cooperação entre os membros da raça superior – plena de violência normativa impregnava a sociedade alemã de forma brutal. Conforme os organizadores da exposição, tal violência não era decorrente de ordens e decisões de apenas um homem – vindas “de cima”. A violência era produzida – no processo de exclusão social produzido pela aceitação voluntária das nações a “comunidade do povo” - através de um processo oriundo, ou mesmo antecipado, das próprias bases da sociedade alemã. Esta é uma discussão dura e amarga e que envolve o povo alemão.
A análise direta e responsável do grupo que organizou a exposição implica numa ampla capacidade comparativa com todas as demais ditaduras. Eis aí um ponto de largo interesse com a América Latina. A questão central estaria, neste caso, em se perguntar se o processo de consumação da violência nas ditaduras é, de alguma forma, diferente ou comparável. Em verdade, se tivermos em mente as experiências históricas das ditaduras latino-americanas – dos anos 30/40 ou dos anos 60/80 do século XX – poderíamos nos perguntar sobre a adesão das sociedades latino-americanas ao processo de violência quotidiana desencadeado pela possibilidade de excluir e punir indivíduos considerados diferentes. Em graus diferentes é um debate recorrente em todas as ditaduras.
Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor visitante da Technischen Universität Berlin.
Karl Schurster é doutorando em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin.
Saiba Mais
Livros:KERSHAW, Ian. "Hitler". São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PAXTON, Robert. "Anatomia do fascismo". São Paulo: Paz e Terra, 2007.
PARADA, Mauricio. (Org.) "Fascismos". Rio de Janeiro: Mauad, 2009.
REICH, Wilhelm. "Psicologia de Massas do Fascismo". São Paulo: Martins Fontes, 2001.Filmes:
HANEKE, Michael. "A fita branca". Áustria, Alemanha, França e Itália, Imovison, 2010.
VERHOEVEN, Michael. "Uma cidade sem passado". Alemanha, ZDF, 1990. A exposição "Hitler und die Deutschen: volksgemeinschaft und verbrechen" (Hitler e os alemães: a comunidade do povo e os criminosos), abrigada na chamada Zeughaus, a antiga Casa de Armas do império alemão, no centro histórico de Berlim, teve como principal propósito uma mudança de foco na interpretação sobre o Terceiro Reich. Seguindo a tendência da historiografia contemporânea, que considera como insuficiente tratar o nazismo como obra solitária de Hitler, os organizadores da mostra, que ocorreu do fim de 2010 ao início de 2011, questionaram qual o significado da escolha do Führer pelo povo alemão e por que continuaram a apoiá-lo até 1945. A centralidade do ditador alemão foi deslocada em prol de uma análise mais profunda sobre a “comunidade do povo alemão”, conceito tão difundido durante o nazismo.
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