quarta-feira, 20 de julho de 2011

Dante e a Divina Comédia

Dante Alighieri (1265-1321)

A DIVINA COMÉDIA ; CLIQUE AQUI > Apresentação: http://www.stelle.com.br/index.html

Dante Alighieri: ilustração de Gustave DoréD

ante Alighieri nasceu em Florença em 1265 de uma família da baixa nobreza. Sua mãe morreu quando era ainda criança e seu pai, quando tinha dezoito anos.

Pouco se sabe sobre a vida de Dante e a maior parte das informações sobre sua educação, sua família e suas opiniões são geralmente meras suposições. As especulações sobre a sua vida deram origem à vários mitos que foram propagados por seus primeiros biógrafos, dificultando o trabalho de separar o fato da ficção. Pode-se encontrar muita informação em suas obras, como na Vida Nova (La Vita Nuova) e naDivina Comédia (Commedia).

Na Vida Nova Dante fala de seu amor platônico por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari), que encontrara pela primeira vez quando ambos tinham 9 anos e que só voltaria a ver 9 anos mais tarde, em 1283. Nos tempos de Dante, o casamento era motivado principalmente por alianças políticas entre famílias. Desde os 12 anos, Dante já sabia que deveria se casar com uma moça da família Donati. A própria Beatriz, casou-se em 1287 com o banqueiro Simone dei Bardi e isto, aparentemente, não mudou a forma como Dante encarava o seu amor por ela. Provavelmente em 1285, Dante casou-se com Gemma Donati com quem teve pelo menos três filhos. Uma filha de Dante tornou-se freira e assumiu o nome de Beatrice.

Em 1290, Beatriz morreu repentinamente deixando Dante inconsolável. Esse acontecimento teria provocado uma mudança radical na sua vida o levando a iniciar estudos intensivos das obras filosóficas de Aristóteles e a dedicar-se à arte poética.

Dante foi fortemente influenciado pelos trabalhos de retórica e filosofia de Brunetto Latini - um famoso poeta que escrevia em italiano (e não em latim, como era comum entre os nobres), tendo também se beneficiado da amizade com o poeta Guido Cavalcanti - ambos mencionados na sua obra. Pouco se sabe sobre sua educação. Segundo alguns biógrafos, é possível que tenha estudado na universidade de Bologna, onde provavelmente esteve em 1285.

A Itália no tempo de Dante estava dividida entre o poder do papa e o poder do Sagrado Império Romano. O norte era predominantemente alinhado com o imperador (que podia ser alemão ou italiano) e o centro, com o papa (veja mapa).

A Itália, porém, não era um império coeso. Não havia um único centro de poder. Havia vários, espalhados pelas cidades, que funcionavam como estados autônomos e seguiam leis e costumes próprios. Nas cidades era comum haver disputas de poder entre grupos opositores, o que freqüentemente levava a sangrentas guerras civis. Florença era, na época, uma das mais importantes cidades da Europa, igual em tamanho e importância a Paris, com uma população de mais de 100 mil habitantes e interesses financeiros e comerciais que incluíam todo o continente.

A política nas cidades representava os interesses de famílias. A afiliação era hereditária. A família de Dante pertencia a uma facção política conhecida como os guelfos(Guelfi) - representados pela baixa nobreza e pelo clero - que fazia oposição a um partido conhecido como os guibelinos(Ghibellini) - representantes da alta nobreza e do poder imperial. Os nomes dos dois grupos eram originários de partidos alemães, porém os ideais políticos eram um mero pretexto para abrigar famílias rivais. Florença se dividiu em guelfos e guibelinos quando um jovem da família Buondelmonti não cumpriu uma promessa de casamento com uma moça da família Amadei e foi assassinado. As famílias da cidade tomaram partido por um lado ou por outro e Florença se dividiu em guelfos e guibelinos.

Dante nasceu em uma Florença governada pelos guibelinos, que haviam tomado a cidade dos guelfos na sangrenta batalha conhecida como Montaperti (monte da morte), em 1260. Em 1289, Dante lutou com o exército guelfo de Florença na batalha de Campaldino, onde os florentinos venceram os exércitos guibelinos de Pisa e Arezzo, e recuperaram o poder sobre a cidade.

Na época de Dante, o governo da cidade era exercido por representantes eleitos de corporações de operários, artesãos, profissionais, etc. chamadas de guildas. Dante se inscreveu na guilda dos médicos e farmacêuticos e disputou as eleições em Florença, tendo sido eleito em 1300 como um dos seis priores (presidentes) do Conselho da Cidade.

A maior parte do poder em Florença estava então nas mãos dos guelfos - opositores do poder imperial. Mas o partido em pouco tempo se dividiu em duas facções. A causa foi novamente uma rixa entre famílias, desta vez, importada da cidade de Pistóia. Os Cancellieri era uma grande família de Pistóia, descendentes de um mesmo pai que tivera, durante sua vida, duas esposas. A família Cancellieri se dividiu quando um membro desajustado da família assassinou o tio e cortou a mão do primo. Os descendentes da primeira esposa do Cancellieri, que se chamava Bianca, decidiram se apelidar deBianchi. Os rivais, que defendiam o jovem assassino, se apelidaram de Neri (negros) em espírito de oposição. A briga tomou conta de Pistóia e a cidade acabou sofrendo intervenção de Florença, que levou presos os líderes dos grupos rivais. Mas as famílias de Florença não demoraram a tomar partido e, por causa de uma briga de rua, a divisão se espalhou pela cidade, dividindo os guelfos em negros e brancos.

Depois de criados, os partidos assumiram posições políticas. Os guelfos brancos, moderados, respeitavam o papado mas se opunham à sua interferência na política da cidade. Já os guelfos negros, mais radicais, defendiam o apoio do papa contra as ambições do imperador, que era apoiado pelos guibelinos.

Os priores de Florença (entre eles Dante) viviam em constante atrito com a igreja de Roma que, sob o governo do papa Bonifácio VIII, pretendia colocar toda a Itália sob a ditadura da igreja. Em um dos encontros com o papa, onde os priores foram reclamar da interferência da igreja sobre o governo de Florença, Bonifácio respondeu ameaçando excomungá-los. A briga entre os Neri e Bianchi tornou-se cada vez mais intensa durante o mandato de Dante até que ele teve que ordenar o exílio dos líderes de ambos os lados para preservar a paz na cidade. Dante foi extremamente imparcial, incluindo, entre os exilados, um dos seus melhores amigos (Guido Cavalcanti) e um parente de sua esposa (da família Donati).

No meio da confusão entre os guelfos de Florença, o papa decidiu enviar Carlos de Valois (irmão do rei Felipe da França) como pacificador para acabar com a briga entre as facções. A suposta ajuda, porém, revelou ser um golpe dosNeri para tomar o poder. Eles ocuparam o governo de Florença e condenaram vários Bianchi ao exílio e à morte. Dante foi culpado de várias acusações, entre elas corrupção, improbidade administrativa e oposição ao papa. Foi banido da cidade por dois anos e condenado a pagar uma alta multa. Caso não pagasse, seria condenado à morte se algum dia retornasse a Florença.

Dante no Exílio. Anônimo. Archivo Iconográfico S. A., Itália.
Imagem pertencente à Corbis Image Collections.

No exílio, Dante se aproximou mais da causa dos guibelinos (o império), à medida em que a tirania do papa aumentava. Ele passou o seu exílio em Forlì, Verona, Arezzo, Veneza, Lucca, Pádua (e também provavelmente em Paris e Bologna). Em 1315 voltou a Verona e dois anos depois fixou-se em Ravenna. Suas esperanças de voltar a Florença retornaram depois que o sucessor de Bonifácio VIII chamou à Itália o imperador Henrique VII. O objetivo de Henrique VII era reunir a Itália sob seu reinado. Porém a traição do papa, que ainda alimentava a idéia de ter um império próprio, seguida por uma nova vitória dos Neri e a morte de Henrique VII três anos depois enterraram de vez as suas esperanças.

Na obra La Vita Nuova, seu primeiro trabalho literário de importância, iniciado pouco depois da morte de Beatriz, Dante narra a história do seu amor por Beatriz na forma de sonetos e canções complementadas por comentários em prosa. Durante o seu exílio Dante escreveu duas obras importantes em latim: De Vulgari Eloquentia, onde defende a língua italiana, e Convivio, incompleto, onde pretendia resumir todo o conhecimento da época em 15 livros. Apenas os quatro primeiros foram concluídos. Escreveu também um tratado: De Monarchia, onde defendia a total separação entre a Igreja e o Estado. A Commedia consumiu 14 anos e durou até a sua morte, em 1321, ocorrida pouco após a conclusão doParaíso. Cinco anos antes de sua morte, foi convidado pelo governo de Florença a retornar à cidade. Mas os termos impostos eram humilhantes, semelhantes àqueles reservados à criminosos perdoados e Dante rejeitou o convite, respondendo que só retornaria se recebesse a honra e dignidade que merecia. Continuou em Ravenna, onde morreu e foi sepultado com honras.

Helder da Rocha

Fontes: [Encarta 97], [Larousse 98], [Mauro 98], [Musa 95], [Cambridge].
Nota: Muitas fontes apresentaram informações contraditórias sobre a vida de Dante, principalmente em relação a datas e sobre sua família. Neste texto, mantive as informações das fontes que eu considerei mais confiáveis. Outros textos podem, portanto, apresentar versões diferentes.



IntroduçãoPágina PrincipalDivina Comédia

O mundo como representação* Roger Chartier

Estudos Avançados

Print version ISSN 0103-4014

Estud. av. vol.5 no.11 São Paulo Jan./Apr. 1991

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141991000100010

REVISTA DAS REVISTAS

O mundo como representação*

Roger Chartier

O editorial da primavera de 1988 dos Annales convida os historiadores a uma reflexão comum a partir de uma dupla constatação. Por uma lado, afirma a existência de uma " crise geral das ciências sociais", que se nota tanto no abandono dos sistemas globais de interpretação, destes "paradigmas dominantes" que foram, durante certo tempo, o estruturalismo ou o marxismo, quanto na rejeição proclamada das ideologias que lhe haviam garantido o sucesso (ou seja, a adesão a um modelo de transformação radical, socialista, das sociedades ocidentais capitalistas e liberais). Por outro lado, o texto não aplica à história a íntegra de tal diagnóstico, pois conclui: "Não nos parece chegado o momento da hipótese de uma crise da história, que alguns aceitam com excessiva comodidade". A história é, pois, vista como uma disciplina ainda sadia e vigorosa, no entanto atravessada por incertezas devidas ao esgotamento de suas alianças tradicionais (com a geografia, a etnologia, a sociologia), e à obliteração das técnicas de tratamento, bem como dos modos de inteligibilidade que davam unidade a seus objetos e a seus encaminhamentos. O estado de indecisão que a caracteriza hoje em dia seria, portanto, algo como o próprio reverso de uma vitalidade que, de maneira livre e desordenada, multiplica os campos de pesquisa, as experiências, os encontros.

Um Diagnóstico Posto em Dúvida

Por que este ponto de partida que postula simultaneamente a crise geral das ciências sociais e a vitalidade preservada da história, mesmo às custas de um ecletismo um tanto anárquico? A estratégia aplicada no texto (tomado o termo aqui, não no sentido de um cálculo racional e consciente, mas designando um ajuste mais ou menos automático a uma situação dada), parece-me comandada pelo cuidado de preservar a disciplina numa conjuntura que se percebe como a marca do declínio radical das teorias e saberes sobre os quais a história tinha fundamentado seus avanços nas décadas de sessenta e setenta. O desafio tinha sido então lançado pelas disciplinas mais recentemente institucionalizadas e triunfantes intelectualmente: a lingüística, a sociologia ou a etnologia. O assalto contra a história pode tomar formas diversas, algumas estruturalistas e outras não, mas todas punham em causa a disciplina nos seus objetos – ou seja, o primado conferido ao estudo das conjunturas, econômicas ou demográficas, e das estruturas sociais – e nas suas certezas metodológicas, tidas como pouco seguras à vista das novas exigências teóricas.

Ao propor objetos de estudo, mantidos até então inteiramente estranhos a uma história dedicada por completo à exploração do econômico e do social, ao propor normas de cientificidade e modos de trabalho imitados das ciências exatas (por exemplo a formalização e a modelização, a explicação das hipóteses, a pesquisa em grupo), as ciências sociais minavam a posição dominante ocupada pela história no campo universitário. A importação de novos princípios de legitimação no domínio das disciplinas "literárias"desqualificava o empirismo histórico, ao mesmo tempo que visava a converter a fragilidade institucional das novas disciplinas em hegemonia intelectual (1).

A resposta dos historiadores foi dupla. Operaram uma estratégia de captação posicionando-se nas frentes abertas por outros. Donde, a emergência de novos objetos no seu questionário: as atitudes perante a vida e a morte, os rituais e as crenças, as estruturas de parentesco, as formas de sociabilidade, os modos de funcionamento escolares etc. – o que significava constituir novos territórios do historiador pela anexação de territórios alheios (de etnólogos, sociólogos, demógrafos). Donde, corolariamente, o retorno maciço a uma das inspirações fundadoras dos primeiros Annales,dos anos trinta: o estudo dos utensílios mentais que o predomínio da história das sociedades havia relegado um tanto a segundo plano. Sob a designação de história das mentalidadesou, por vezes, de psicologia histórica delimitava-se um domínio de pesquisa, distinto tanto da velha história das idéias quanto da das conjunturas e estruturas. Sobre esses objetos novos (ou reencontrados) podiam ser postos à prova modos de tratamento inéditos, tomados de empréstimo às disciplinas vizinhas: tais como as técnicas de análise lingüística e semântica, os instrumentos estatísticos da sociologia ou certos modelos da antropologia.

Porém esta captação (dos territórios, das técnicas, das marcas de cientificidade) só poderia ser plenamente proveitosa se não se abandonasse nada do que tinha fundado a força da discipilina, por meio do tratamento quantitativo de fontes maciças e seriais (registros paroquiais, cotações de mercado, atas notariais, etc.). Majoritariamente, a história das mentalidades construiu-se, pois, ao aplicar a novos objetos os princípios de inteligibilidade previamente provados na história das economias e das sociedades. Por isso suas características específicas: a preferência pelo maior número, portanto à pesquisa da cultura tida como popular, a confiança no numérico e na série, o gosto pela longa duração, o primado conferido ao recorte sócio-profissional. Os traços próprios à história cultural assim definida, que articula a constituição de novas áreas de pesquisa com a fidelidade aos postulados da história social, são a tradução da estratégia da disciplina que se outorgava uma legitimidade científica renovada – garantia da manutenção de sua centralidade institucional – ao recuperar em seu proveito as armas que deveriam tê-la derrubado. A operação foi, como se sabe, um franco sucesso, estabelecendo uma aliança estreita e confiante entre a história e as disciplinas que, durante certo tempo, pareciam ser suas mais perigosas concorrentes.

O desafio então lançado à história no final dos anos oitenta, é como o inverso do precedente. Não se ancora mais numa crítica dos hábitos da disciplina em nome das inovações das ciências sociais, mas numa crítica dos postulados das próprias ciências sociais. Os fundamentos intelectuais do assalto são claros: por um lado, o retorno a uma filosofia do sujeito que recusa a força das determinações coletivas e dos condicionamentos sociais e que acredita reabilitar "a parte explícita e refletida da ação"; por outro lado, o primado conferido ao político que deveria supostamente constituir "o nível mais abrangente" da organização das sociedades e, no entanto, fornecer " uma nova chave para a arquitetura da totalidade". A história é, pois, convidada a reformular seus objetos (recompostos a partir de uma interrogação sobre a própria natureza do político), suas freqüentações (privilégio concedido ao diálogo travado com a ciência política e a teoria do direito) e, mais fundamentalmente ainda, seu princípio de inteligibilidade, destacado do " paradigma crítico" e redefinido por uma filosofia da consciência. Numa tal perspectiva, o mais urgente é, pois, separar o mais claramente possível a disciplina histórica (resgatável às custas de "dilacerantes revisões") das ciêncais sociais outrora dominantes (a sociologia e a etnologia) condenadas por sua adesão preferencial a um paradigma obsoleto (2).

De maneira discreta e eufêmica, o diagnóstico proposto pelo editorial dos Annales, por seu tratamento diferençado da história, que viveria uma " guinada crítica", e das ciências sociais, que viveriam numa "crise geral", parece-me partilhar algo desta posição. Daí uma questão prévia: a constatação proposta pode ser aceita sem reservas? Proclamar, depois de tantos outros, que as ciências sociais estão em crise não basta para estabelecê-la. O refluxo do marxismo e do estruturalismo não significa em si a crise da sociologia e da etnologia, uma vez que, no campo intelectual francês, é justamente à distancia das representações objetivistas propostas por estas duas teorias referenciais que se constroem as pesquisas mais fundamentais, invocando contra as determinações imediatas das estruturas as capacidades inventivas dos agentes, e contra a submissão mecânica à regra as estratégias próprias da prática. A mesma observação vale a fortiori para a história, obstinadamente refratária (salvo notórias exceções) ao emprego dos modelos de compreensão forjadas pelo marxismo ou pelo estruturalismo. Do mesmo modo, não parece que o efeito "volta da China", evocado para designar as desilusões e as rejeições ideológicas da última década, tenha contribuído muito para inquietar e modificar a prática dos historiadores, pois poucos foram os que fizeram a viagem a Pequim. Não foi o caso, sem dúvida, nos anos sessenta, da geração de historiadores que, de volta de Moscou, opunha à abordagem dogmática de um marxismo ortodoxo o projeto novo – hoje recusado – de uma história social quantitativa.

Três Deslocamentos sob Forma de Renúncia

Gostaria, pois, de sugerir que as verdadeiras mutações do trabalho histórico nestes últimos anos não foram produzidas por uma "crise geral das ciências sociais" (que deveria ser demonstrada mais do que proclamada) nem por uma "mudança de paradigma" (que não se tornou realidade apenas por ter sido ardentemente desejada por alguns), mas que estão ligadas à distância tomada, nas próprias práticas de pesquisa, em relação aos princípios de inteligibilidade que tinham governado o procedimento historiador há vinte ou trinta anos.

Três eram essenciais: o projeto de uma história global, capaz de articular num mesmo apanhado os diferentes níveis da totalidade social; a definição territorial dos objetos de pesquisa, geralmente identificados com a descrição de uma sociedade instalada num espaço particular (uma cidade, uma província, uma região) – que era a condição de possibilidade da coleta e do tratamento dos dados exigidos pela história total; o primado conferido ao recorte social considerado capaz de organizar a compreensão das diferenciações e das partilhas culturais. Ora, este conjunto de certezas/abalou-se progressivamente, deixando o campo livre a uma pluralidade de abordagens e de compreensões.

Ao renunciar, de fato, à descrição da totalidade social e ao modelo braudeliano, que se tornou intimidador, os historiadores tentaram pensar os funcionamentos sociais fora de uma partição rigidamente hierarquizada das práticas e das temporalidades (econômicas, sociais, culturais, políticas) e sem que fosse dada primazia a um conjunto particular de determinações (fossem elas ténicas, econômicas ou demográficas). Daí as tentativas para decifrar de outro modo as sociedades, penetrando na meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.

Ao renunciar a tomar as diferenciações territoriais como os quadros obrigatórios de pesquisa, os historiadores franceses afastaram sua disciplina do procedimento de inventário, que provém da escola de geografia humana. A cartografia das particularidades, cuja razão devia ser encontrada na diversidade das condições geográficas, foi substituída pela pesquisa das regularidades – o que significa reatar com a tradição, recusada pelos Annales dosanos trinta, da sociologia durkheimiana e preferir o estabelecimento de leis gerais, como desejava a morfologia social, à descrição das singularidades regionais (3). Daí, uma questão aguda: como pensar o acesso ao geral a partir do momento em que não é mais tido como a soma cumulativa das constatações particulares? Sabe-se da extrema diversidade das respostas, desde as que continuam fiéis a uma escala estatística das correlações e das constantes até as que reivindicam a exemplaridade dos desvios e que, ao manipular a noção paradoxal de "excepcional normal", procura o mais comum no menos corriqueiro (4).

Enfim, ao renunciar ao primado tirânico do recorte social para dar conta dos desvios culturias, a história em seus últimos desenvolvimentos mostrou, de vez, que é impossível qualificar os motivos, os objetos ou as práticas culturais em termos imediatamente sociológicos e que sua distribuição e seus usos numa dada sociedade não se organizam necessariamente segundo divisões sociais prévias, identificadas a partir de diferenças de estado e de fortuna. Donde as novas perspectivas abertas para pensar outros modos de articulação entre as obras ou as práticas e o mundo social, sensíveis ao mesmo tempo à pluralidade das clivagens que atravessam uma sociedade e à diversidade dos empregos de materiais ou de códigos partilhados.

Mundo do Texto e Mundo do Leitor: A Construção do Sentido

De acordo com estes três deslocamentos, libertadores em relação à tradição instituída, mas também produtores de incerteza por não constituírem em si um sistema unificado de compreensão, gostaria agora de formular algumas proposições diretamente derivadas de minha própria experiência. Toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho específico. O meu organiza-se em torno de três pólos, geralmente separados pelas tradições acadêmicas: de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferençadas. Ao longo de trabalhos pessoais ou de levantamentos coletivos, uma questão central sub-tendeu esta abordagem: compreender como, nas sociedades do Antigo Regime, entre os séculos XVI e XVIII, a circulação multiplicada do escrito impresso modificou as formas de sociabilidade, autorizou novos pensamentos, transformou as relações com o poder (5).

Daí a atenção voltada para a matéria com que se opera o encontro entre " o mundo do texto" e o " mundo do leitor" – para retomar os termos de Paul Ricoeur (6). Várias hipóteses orientaram a pesquisa, fosse ela organizada a partir do estudo de uma classe particular de objetos impressos (por exemplo o corpus da literatura de colportage), ou a partir do exame das práticas de leitura, em sua diversidade, ou ainda a partir da história de um texto particular, proposto a públicos diferentes em formas muito contrastadas. A primeira hipótese sustenta a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) como um processo historicamente determinado cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades. A segunda considera que as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes).

Estes, com efeito, não se confrontam nunca com textos abstratos ideais, separados de toda materialidade: manejam objetos cujas organizações comandam sua leitura, sua apreensão e compreensão partindo do texto lido. Contra uma definição puramente semântica do texto, é preciso considerar que as formas produzem sentido, e que um texto estável na sua literalidade investe-se de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem à leitura.

É preciso considerar também que a leitura é sempre uma prática encarnada em gestos, espaços, hábitos. Longe de uma fenomenologia da leitura que apague todas as modalidades concretas do ato de ler e o caracterize por seus efeitos, postulados como universais (7), uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura. O procedimento supõe o reconhecimento de diversas séries de contrastes. De início, entre as competências de leitura. A clivagem, essencial porém grosseira, entre analfabetizados e analfabetos, não esgota as diferenças na relação com o escrito. Os que podem ler os textos, não os lêem de maneira semelhante, e a distância é grande entre os letrados de talento e os leitores menos hábeis, obrigados a oralizar o que lêem para poder compreender, só se sentindo à vontade frente a determinadas formas textuais ou tipográficas. Constrastes igualmente entre normas de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos do livro, modos de ler, procedimentos de interpretação. Contrastes, enfim, entre as expectativas e os interesses extremamente diversos que os diferentes grupos de leitores investem na prática de ler. De tais determinações, que regulam as práticas, dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos, e lidos diferentemente pelos leitores que não dispõem dos mesmos utensílios intelectuais e que não entretêm uma mesma relação como escrito.

"New readers make new texts, and their meanings are a function of their new form" (8). D. F. McKenzie designou com grande acuidade o duplo conjunto de variações – variações das disposições dos leitores, variações dos dispositivos dos textos e dos objetos impressos que os sustentam – que deve ser levado em conta por toda história que postule como central a questão das modalidades contrastadas da construção do sentido. No espaço assim traçado se inscreve todo trabalho situado no cruzamento de uma história das práticas, social e historicamente diferençadas, e de uma história das representações inscritas nos textos ou produzidas pelos indivíduos. Tal perspectiva tem muitos corolários. De um lado, define um tipo de pesquisa que, necessariamente, associa as técnicas de análise das disciplinas pouco afeitas a semelhante proximidade: a crítica textual, a história do livro, em todas as suas dimensões, a história sócio-cultural. Mais do que um trabalho interdisciplinar – que supõe sempre uma identidade estável e distinta entre as disciplinas que firmam aliança –, é antes um recorte inédito do objeto que está proposto, implicando a unidade do questionário e do procedimento, qualquer que seja a origem disciplinar dos que os partilham (historiadores de literatura, historiadores do livro, ou toriadores das mentalidades na tradição dos Afínales). Por outro lado, esta interrogação sobre os efeitos do sentido das formas materiais leva a conceder (ou re-conceder) um lugar central no campo da história cultural aos saberes mais classicamente eruditos: por exemplo, os da bibliography, da paleografia ou da codicologia (9). Porque permitem descrever rigorosamente os dispositivos materiais e formais pelos quais os textos atingem os leitores, esses saberes técnicos, por tanto tempo negligenciados pela sociologia cultural, constituem um recurso essencial para uma história das apropriações.

Esta noção parece central para a história cultural, desde que seja reformulada. Esta reformulação, que enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreensões e a liberdade criadora – mesmo regulada dos agentes que não obrigam nem os textos nem as normas, distancia-se, em primeiro lugar, do sentido que Michel Foucault dá ao conceito, ao tomar " a apropriação social dos discursos" como um dos procedimentos maiores através dos quais os dicursos são dominados e confiscados pelos indivíduos ou instituições que se arrogam o controle exclusivo sobre eles (10). Distancia-se também do sentido que a hermenêutica da à apropriação, pensada como o momento em que a " aplicação" de uma configuração narrativa particular à situação do leitor refigura sua compreensão de si e do mundo, logo sua experiência fenomenológica tido como universal e subtraída a toda variação histórica (11). A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem (12). Assim, voltar a atenção para as condições e os processos que, muito concretamente, sustentam as operações de produção do sentido (na relação de leitura, mas em tantos outros também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências nem as idéias são desencarnadas, e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadas como invariantes, sejam elas filosóficas ou fenomenológicas, devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas.

Da História Social da Cultura a uma História Cultural do Social

O procedimento supõe uma tomada de distância em relação aos princípios que fundavam a história social da cultura na sua acepção clássica. Um primeiro distanciamento estabeleceu-se face a uma concepção estreitamente sociográfica que postula que as clivagens culturias estão forçosamente organizadas segundo um recorte social previamente construído. E preciso, creio, recusar esta dependência que refere as diferenças de hábitos culturais a oposições sociais dadas a priori, tanto à escala de contrastes macroscópicos (entre as elites e o povo, entre os dominantes e os dominados), quanto à escala das diferenciações menores (por exemplo entre os grupos sociais hierarquizados pelos níveis de fortuna ou atividades profissionais).

De fato, as clivagens culturais não estão forçosamente organizadas segundo uma grade única do recorte social, que supostamente comandaria tanto a presença desigual dos objetos como as diferenças nas condutas. A perspectiva deve pois ser invertida e traçar, de início, a área social (muitas vezes compósita) em que circulam umcorpus de textos, uma ciasse de impressos, uma produção, ou uma norma cultural. Partir assim dos objetos, das formas, dos códigos, e não dos grupos, leva a considerar que a história sócio-cultural repousou demasiadamente sobre uma concepção mutilada do social. Ao privilegiar apenas a classificação sócio-profissional, esqueceu-se de que outros princípios de diferenciação, igualmente sociais, podiam dar conta, com maior pertinência, dos desvios culturais. Assim sendo, as pertenças sexuais ou geracionais, as adesões religiosas, as tradições educativas, as solidariedades territoriais, os hábitos de ofício.

Aliás, a operação que visa a caracterizar as configurações cultuais a partir de materiais tidos como específicos a elas (assim, exemplo clássico na identificação entre literatura de colportage e cultura popular) parece hoje duplamente redutora. De um lado, assimila o reconhecimento das diferenças unicamente às desigualdades de distribuição; de outro, ignora o processo pelo qual um texto, uma fórmula, uma norma fazem sentido para os que deles se apoderam ou os recebem.

Tomemos o exemplo da circulação dos textos impressos nas sociedades de Antigo Regime. Compreendê-la exige um duplo deslocamento em relação às abordagens iniciais. O primeiro situa o reconhecimento dos desvios socialmente mais enraizados nos usos contrastados de materiais partilhados. Mais do que se admitiu por muito tempo, é exatamente dos mesmos textos que se apropriam os leitores populares e os que não o são. Ou porque leitores de condição humilde chegassem a possuir livros que não lhes eram especificamente destinados (é o caso de Menocchio, o moieiro do Friul, leitor das Viagens de Mandeville, do Decameronou do Fioretto delia Bibbia, ou de Méenéetra, o vidraceiro parisiense, admirador fervoroso de Rousseau (13), ou que os livreiros-editores inventivos e avisados pusessem ao alcance de uma ampla clientela textos que circulariam apenas no estreito mundo dos letrados (é o caso da fórmula editorial conhecida sob o termo genérico de Biliothéque bleue, proposta aos leitores mais humildes desde o fim do século XVI pelos editores de Troyes). O essencial é, portanto, compreender como os mesmos textos – sob formas impressas possivelmente diferentes – podem ser diversamente aprendidos, manipulados, compreendidos.

Daí a necessidade de um segundo deslocamento atento às redes de prática que organizam os modos, histórica e socialmente diferençados, da relação aos textos. A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo, é inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro. Por isso devem ser reconstruídas as maneiras de ler próprias a cada comunidade de leitores, a cada uma dessas "interpretative communities "de que fala Stanley Fish (14). Uma história da leitura não se pode limitar unicamente à genealogia de nossos modos de ler, em silêncio e com os olhos, mas tem a tarefa de redescobrir os gestos esquecidos, os hábitos desaparecidos. A questão é de importância, pois não revela somente a distante estranheza de práticas por longo tempo comuns, mas também os agenciamentos específicos de textos compostos para os usos que não são os de seus leitores de hoje. Assim, nos séculos XVI e XVII, e aínda hoje muitas vezes, a leitura implícita do texto, literário ou não, é construída como uma oralização, e seu leitor como um leitor que lê em voz alta e se dirige a um público de ouvintes. Destinada tanto para o ouvido quanto para o olho, a obra conta com formas e procedimentos capazes de submeter o escrito às exigências próprias do desempenho oral. Dos motivos tratados no Quixote àsestruturas dos livros que costituem a Bibliothèque bleue, numerosos são os exemplos da ligação tardia entre o texto e a voz.

"Whatever they may do, authors do not write books. Books are not written at all. They are manufactured by scribes and other artisans, by mechanics and other engineers, and by printing press and other machines" (15). A observação pode introduzir uma outra revisão. Contra a representação, elaborada pela própria literatura, segundo a qual o texto existe em si, separado de toda materialidade, é preciso lembrar que não há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas pelas quais atinge o leitor. Daí a distinção indispensável entre dois conjuntos de dispositivos: os que provêm das estratégias de escrita e das intenções do autor, e os que resultam de uma decisão do editor ou de uma exigência de oficina de impressão (16).

Os autores não escrevem livros: não, escrevem textos que outros transformam em objetos impressos. A diferença, que é justamente o espaço em que se constrói o sentido – ou os sentidos –, foi muitas vezes esquecida, não somente pela história literária clássica, que pensa o obra em si, como um texto abstrato cujas formas tipográficas não importam, mas também pela Rezeptionsästhetikque postula, apesar de seu desejo de historicizar a experiência que os leitores têm das obras, uma relação pura e imediata entre os "sinais" emitidos pelo texto – que contam com as convenções literárias aceitas – e "o horizonte de expectativa" do público a que se dirigem. Numa tal perspectiva, "o efeito produzido" não depende de modo algum das formas materiais que suportam o texto (17). No entanto, também contribuem amplamente para dar feição às antecipações do leitor em relação ao texto e para avocar novos públicos ou usos inéditos.

Representações Coletivas e Identidades Sociais

A partir deste terreno de trabalho em que se enredam o texto, o livro e a leitura, podem-se formular várias proposições que articulam de maneira nova os recortes sociais e as práticas culturais. A primeira alimenta a esperança de levantar os falsos debates em torno da divisão, dada como universal, entre as objetividades das estruturas (que seria o território da história mais segura, que, ao manipular documentos maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das representações (a que se ligaria uma outra história dedicada aos discursos e situada à distância do real). Uma tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também as outras ciências sociais como a sociologia ou a etnologia, opondo abordagens estruturalistas e procedimentos fenomenológicos, as primeiras trabalhando em grande escala sobre as posições e as relações dos diferentes grupos, muitas vezes identificadas a classes, os segundos privilegiando o estudo dos valores e dos comportamentos de comunidade mais restritas, muitas vezes tidos como homogêneos (18).

Tentar superá-la exige, a princípio, considerar os esquemas geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadeiras "instituições sociais", incorporando sob a forma de representações coletivas as divisões da organização social – "As primeiras categorias lógicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram classes de homens em que estas coisas foram integradas" (19) –, mas também considerar, corolariamente, estas representações coletivas como as matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social – "Mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm existência, só são verdadeiramente tais, na medida em que comandam atos" (20).

Este retorno a Marcel Mauss e Emile Durkheim e à noção de " representação coletiva" autoriza a articular, sem dúvida melhor que o conceito de mentalidade, três modalidades de relação com o mundo social: de início, o trabalho de classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais "representantes" (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe.

Uma dupla via abre-se assim: uma que pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas pelos que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de aceitação ou de resistência, que cada comunidade produz de si mesma (21); outra que considera o recorte social objetivado como a tradução do crédito conferido à representação que cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua existência a partir de uma demonstração de unidade (22). Ao trabalhar sobre as lutas de representação, cuja questão é o ordenamento, portanto a hierarquização da própria estrutura social, a história cultural separa-se sem dúvida de uma dependência demasiadamente estrita de uma história social dedicada exclusivamente ao estudo das lutas econômicas, porém opera um retorno hábil também sobre o social, pois centra a atenção sobre as estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido constitutivo de sua identidade.

Para o historiador das sociedade de Antigo Regime, construir a noção de representação como o instrumento essencial da análise cultural é investir de uma pertinência operatória um dos conceitos centrais manuseados nestas sociedades. A operação de conhecimento está, assim, ligada ao utensílio nacional que os contemporâneos utilizavam para tornar sua própria sociedade menos opaca ao entendimento. Nas definições antigas (por exemplo, a do Dicionário universal de Furetière em sua edição de 1727) (23), as acepções correspondentes à palavra "representação "atestam duas famílias de sentido aparentemente contraditórias: por um lado, a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepção, a representação é o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma "imagem"capaz de repô-lo em memória e de "pintá-lo" tal como é. Dessas imagens, algumas são totalmente materiais, substituindo ao corpo ausente um objeto que lhe seja semelhante ou não: tais os manequins de cera, de madeira ou couro que eram postos sobre a uma sepulcral monárquica durante os funerais dos soberanos franceses e ingleses ("Quando se vai ver os príncipes mortos, exibidos em seus leitos de morte, só se vê arepresentação, a efígie") ou, mais geralmente e outrora, o leito fúnebre vazio e recoberto por um lençol mortuário que " representa" o defunto (" Representação diz-se também na igreja de uma falsa uma de madeira, coberta por um véu de luto, em torno do qual se acendem cirios, quando se oficia uma cerimônia fúnebre") (24). Outras imagens funcionam num registro diferente: o da relação simbólica que, para Furetière, é "a representação de algo de moral pelas imagens ou pelas propriedades das coisas naturais(...). O leão é o símbolo do valor, a bolha o da inconstância, o pelicano o do amor materno". Uma relação decifrável é portanto postulada entre o signo visível e o referente significado – o que não quer dizer, é claro, que é necessariamente decifrado tal qual deveria ser.

A relação de representação – entendida como relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga - traça toda a teoria do signo do pensamento clássico, elaborada em sua maior complexidade pelos lógicos de Port Royal (25). Por um lado, são essas modalidades variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou prováveis, naturais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que é representado, etc.) e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos (26). Por outro lado, ao identificar as duas condições necessárias para que uma tal relação seja inteligível (ou seja, o conhecimento do signo como signo, no seu desvio em relação à coisa significada, e a existência de convenções regulando a relação do signo com a coisa), a Lógica de Port-Royal propõe os termos de uma questão fundamental: a das possíveis incompreensões da representação, seja por falta de " preparação" do leitor (o que remete às formas e aos modos de inculcação das convenções), seja pelo fato da "extravagância" de uma relação arbitrária entre o signo e o significado (o que levanta a questão das próprias condições de produção das equivalências admitidas e partilhadas (27).

As formas de teatralização da vida social na sociedade de Antigo Regime dão o exemplo mais manifesto de uma perversão da relação de representação. Todas visam, de fato, a fazer com que a coisa não tenha existência a não ser na imagem que exibe, que a representação mascare ao invés de pintar adequadamente o que é seu referente. Pascal desnuda este mecanismo da "vitrina" que manipula os signos destinados a produzir ilusão – e não a fazer conhecer as coisas tais como são:

Os nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas togas vermelhas, ps arminhos com que se enfaixam como gatos peludos, os palácios em que julgam, as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito necessário: e, se os médicos não tivessem sotainas e galochas, e os doutores não usassem borla e capelo e túnicas muito amplas de quatro partes, nunca teriam enganado o mundo, que não pode resistir a essa vitrina tão autêntica. Se possuíssem a verdadeira justiça e se os médicos fossem senhores da verdadeira arte de curar, não teriam o que fazer da borla e do capelo; a majestade destas ciências seria bastante venerável por si própria. Como, porém, possuem apenas ciências imaginárias, precisam tomar esses instrumentos vãos que impressionam as imaginações com que lidam; e destarte, com efeito, atraem o respeito" . (Pascal, Pensamentos, tradução de Sérgio Milliet, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1957, pp. 70-71)

A relação de representação é, desse modo, perturbada pela fraqueza da imaginação, que faz com que se tome o engodo pela cerdade, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma realidade que não o é. Assim desviada, a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, num instrumento que produz uma exigência interiorizada, necessária exatamente onde faltar o possível recurso à força bruta: "Só os homens de guerra não estão disfarçados assim, porque na realidade a sua parte é mais essencial: estabelecem-se pela força, ao passo que os outros o fazem pela aparência" (28).

Toda reflexão engajada sobre as sociedade de Antigo Regime só pode inscrever-se na perspectiva assim traçada, duplamente pertinente. Por considerar a posição " objetiva" de cada indivíduo como dependente do crédito que aqueles de que espera reconhecimento conferem à representação que dá de si mesmo. Por compreender as formas de dominação simbólica, pelo "aparelho" ou pelo "aparato", como escreve La Bruyère (29), como o corolário da ausência ou do apagamento da violência imediata. E portanto no processo de longa duração de erradicação da violência, tornada monopólio do Estado absolutista (30), que é preciso inscrever a importância crescente das lutas de representação, cuja problemática central é o ordenamento, logo a hierarquização da própria estrutura social.

O Sentido das Formas

A constatação pode levar a uma segunda proposição que visa identificar os desvios mais socialmente enraizados nas diferenças mais formais. E isso, por duas razões possivelmente contraditórias. Por um lado, os dispositivos formais – textuais ou materiais – inscrevem em suas próprias estruturas as expectativas e as competências do público a que visam organizando-se portanto a partir de uma representação da diferenciação social. Por outro lado, as obras e os objetos produzem sua área social de recepção, muito mais do que as divisões cristalizadas ou prévias o fazem. Recentemente, Lawrence W. Levine fez a demonstração disso, mostrando que a maneira como eram representadas as peças de Shakespeare na América do século XIX (ou seja, misturadas com múltiplas outras formas de espetáculo, tomadas de empréstimo à farsa, ao melodrama, ao ballet, ao circo) tinha criado um público amplo, ruidoso e irriquieto, que ia muito além da pura e simples elite burguesa e letrada (31). Estes dispositivos de representação do drama shakesperiano são da mesma ordem que as transformações "tipográficas" operadas pelos editores da Bibliothèque bleue sobre as obras postas no catálogo: ambos visam, com efeito, a inscrever o texto numa matriz cultural que não é a dos destinatários primeiros e a permitir assim uma pluralidade de apropriações.

Os dois exemplos levam a considerar as diferenciações culturais, não como a tradução de divisões estáticas e imóveis, mas como o efeito de processos dinâmicos. Por um lado, a transformação das formas através das quais um texto é proposto autoriza recepções inéditas, logo cria novos públicos e novos usos. Por outro, a partilha dos mesmos bens culturais pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade suscita a busca de novas distinções, capazes de marcar os desvios mantidos. A trajetória do livro no antigo Regime francês pode testemunhar isso. Tudo acontece como se as diferenciações entre os modos de ler fossem multiplicadas e afinadas à medida que o escrito impresso fosse se tornando menos raro, menos confiscado, mais corriqueiro. Enquanto a simples posse do livro, durante muito tempo tinha significado por si mesma uma superioridade cultural, são os usos do livro, legítimos ou selvagens, e a qualidade dos objetos tipográficos, finos ou vulgares, que se encontram progressivamente investidos de uma tal função.

É sem dúvida essa atenção dada às " formalidades das práticas" (segundo a expressão de Michel de Certeau), do lado da produção ou do da recepção, que mais prejudicou uma maneira clássica de escrever a história das mentalidades. Em primeiro lugar, obrigando-a a considerar os discursos em seus próprios dispositivos, suas articulações retóricas ou narrativas, suas estratégias de persuasão ou de demonstração. Os agenciamentos discursivos e as categorias que os fundam – como os sistemas de classificação, os critérios de recorte, os modos de representações – não se reduzem absolutamente às idéias que enunciam ou aos temas que contêm. Possuem sua lógica própria – e uma lógica que pode muito bem ser contraditória, em seus efeitos, coma letra da mensagem. Segunda exigência: tratar os discursos em sua discontinuidade e sua discordância. Durante muito tempo, pareceu fácil o caminho que levava a concluir a partir da análise temática de um conjunto de textos a caracterização de uma " mentalidade" (ou de uma " visão do mundo" ou de uma " ideologia"), e depois fazia passar desta última a uma consignação social unívoca. A tarefa parece menos simples desde a partir do momento em que cada série de discursos seja compreendida em sua especificidade, ou seja inscrita em seus lugares (e meios) de produção e suas condições de possibilidade, relacionada aos princípios de regularidade que a ordenam e controlam, e interrogada em seus modos de reconhecimento e de veridicidade. Reintroduzir assim no âmago da crítica histórica o questionário estabelecido por Foucault para o tratamento das "séries de discursos "é certamente mutilar a ambição totalizadora da história cultural, desejosa de reconstruções globais. Mas é também a condição para que os textos, quaisquer que sejam, que o historiador constitui em arquivos, sejam subtraídos das reduções ideológicas e documentais que os destruíam enquanto "práticas descontínuas" (32).

Figuras do Poder e Práticas Culturais

Nossa última proposta visa a rearticular as práticas culturais sobre as formas de exercício do poder. A perspectiva supõe um distanciamento em relação ao " retorno do político", que parece ter tomado uma parte da historiografia francesa. Fundada sobre o primado da liberdade do sujeito, pensado como livre de toda e qualquer determinação, e privilegiando a oferta de idéias e aparte refletida da ação, uma tal posição obstina-se numa dupla importância: ignora as exigências não sabidas pelos indivíduos e que no entanto regulam – aquém dos pensamentos claros e muitas vezes apesar deles – as representações e as ações; supõe uma eficácia própria às idéias e aos discursos, separados das formas que os comunicam, destacados das práticas que, ao se apropriarem deles, os investem de significações plurais e concorrentes.

Nossa perspectiva é outra: quer compreender a partir das mutações no modo de exercício do poder (geradores de formações sociais inéditas) tanto as transformações das estruturas da personalidade quanto as das instituições e das regras que governam a produção das obras e a organização das práticas. A ligação estabelecida por Elias entre, por um lado a racionalidade de corte – entendida como uma economia psíquica específica, produzida pelas exigências de uma forma social nova, necessária ao absolutismo – e, por outro, os traços próprios à literatura clássica – em termos de hierarquia de gêneros, de características estilísticas, de convenções estéticas – designa com acuidade o lugar de um trabalho possível (33). Mas é também a partir das divisões instauradas pelo poder (por exemplo entre os séculos XVI e XVII entre razão de Estado e consciência moral, entre patronagem estatal e liberdade de foro íntimo) que devem ser apreciadas tanto a emergência de uma esfera literária autônoma como a constituição de um mercado de bens simbólicos e de julgamentos intelectuais ou estéticos (34). Estabelece assim um espaço da crítica livre onde se opera uma progressiva politização, contra a monarquia do Antigo Regime de práticas culturais que o Estado tinha durante algum tempo capturado em seu proveito – ou que tinham nascido como reação a seu ascendente, na esfera do privado.

Num momento em que se encontra muitas vezes recusada a pertinência da interpretação social, que estas poucas reflexões e propostas não sejam tomadas como índice de um alinhamento a uma tal posição. Ao contrário, na fidelidade crítica à tradição dos Annales, elas gostariam de ajudar a reformular a maneira de ajustar a compreensão das obras, das representações e das práticas às divisões do mundo social que, conjuntamente, significam e constroem.

Notas

1 Os dados relativos às tranformações morfológicas (peso numérico, capital escolar e capita; social dos docentes) das disciplinas universitárias durante a década de sessenta foram reunidas por P. BOURDIEU, L. BOLTANSKI e P. MALDIDIER, "La défense du corps", Information sur les Sciences sociales, X, 4,1971, pp. 48-86. Eles constituem a base estatística so livro de P. BOURDIEU, Homo academicus, Paris, Les Editions de Minuit, "Le sens commum", 1984, 302 p.

2 Para uma formulação coerente e radical destas proposições sob forma de constatação, ver M. GAUCHET, "Changement de paradigma en sciences sociales?", Le d'abat, 50, mai-août 1988, p. 165-170.

3 R. CHARTTER," Science sociale et découpage regional. Note sur deux débats 1820-1920", Acts de la Recherche en Sciences Sociales, 35 novembre, 1980, pp. 27-36.

4 E. GRENDI," Micro-analisi e storia sociale", Quaderni Sttorici, 35,1972, pp. 506-520.

5 R. CHARTTER, Lectures et lecteurs dans la France d 'Ancien Regime, Paris, Editions du Seuil, 1987, 369 p. et A. BOURDEAU, R. CHARTIER, M. -E. DUCREUX, C. JOUHAUD, P. SAENGER, C. VELAY-VALLANTIN, Les Usages de l 'imprimé (XV e.-XIXe, siècles), Paris, Libraire Arthème Fayard, 1987,446 p.

6 P. RICOEUR, Temps et récit,t. III, Le temps raconté,Paris, Editions du Seuil, 1985, pp. 228-263.

7 W. ISER, L 'acte de lecture. Theme de l 'effect esthétique, Bruxelles, Pierre Mardaga, 1985 (tr. rf. de Der Akt des Lesens. Theme ästhetischer Wirkung, Munich Wilhelm Fink, 1976).

8 D.F. McKENZIE, Bibliography Sociology of Texts: panizzi lectures, 1985, Londres, The British Library, 1986, p.20.

9 Como exemplo, cf. A. PETRUCCI, La scrittura, Ideologia e rappresentazione, Turin, Einaudi, 1986.

10 M. FOUCAULT, L "Orare du discoursing Editions Gallimard, pp. 45-47.

11 P. RICOEUR, Temps et récit, op. cit.,t. III, p. 229.

12 Esta perspectiva deve muito ao trabalho de M. DE CERTEAU particularmente ao livro L 'Invention du quotidien, I,Arts de faire,Paris, Union Génerale d'Editions, 10/18,1980.

13 C. GINZBURG, Le fromage et les vers. L'Univers d'un meunier du XVIe. siècle. Paris, Flammarion, 1980 (tr. fr. de il fromaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del '500, Turin, Louis Ménétra, compagnon vitrier au 18e. siècle,présent par Daniel ROCHE, Paris, Editions Montalba, 1982.

14 S. FISH, Is There a Text in This Class? The Authority of lnterpretative Communities,Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1989, pp. 1-17.

15 R. STODDARD, "Morphology and the Book from an American Perspective", Printing History,l7,1987, pp. 2-14.

16 R. CHARTIER, "Texts, Printing, Readings", The New Cultural History, introdução de Lynn Hunt, Berckeley, university of California Press, 1989, pp. 154-175.

17 H. R. JAUSS, Pourune esthétique de la réception, Paris, Editions Gallimard, 1978, pp. 21-80 (tr. fr. deLiteraturgeschichte als Provokation, Frankfort-sur-le-Main, Suhrkamp Verlag, 1970, pp. 144-207).

18 P. BOURDIEU, Choses dites, Paris, Les Editions de Minuit, 1987, pp. 47-71.

19 E. DURKHEIM e M. MAUSS," De quelques formes primitives de classification. Contribuition à l'étude des représentations collectives", Année sociologique, 1903, reeditado em M. MAUSS Oeuvres complètes, 2,Représentations collectives et diversité des civilizations, Paris, Les Editions de Minuitv 1969, pp. 13-89 (citação p. 83).

20 M. MAUSS," Divisions et proportions de la sociologie", Année sociologique, 1927, reeditado em M. MAUSS,Oeuvres complètes, 3, Cohésion sociale et divisions de la sociologie, Paris, Les Editions de Minuit, 1969, pp. 178-245 (citação p. 210).

21 Por exemplo, cf. C. GINZBURG, Les Batailles Nocturnes Sorcellerie et rituels agraires en Frioul, XVIe-XVIIIe siècle, Lagrasse, Editions Verdier, 1980 (tr. fr. de I Benandanti. Stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turin, Giulio Einaudi Editore, 1966).

22 Por exemplo, cf. L. BOLTANSKI, OLes cadres. La formation d 'un groupe social, Paris, Les Editions de Minuit, 1982.

23 FURETIERE, dictionnaire universel,contenant généralement tous les mots français tant vieux que modernes et les termes des sciences et des arts, corrigido por M. Basnage de Bauval e revisto por M. Brutel de La Rivière, la haye, 1727, artigos Representation e Symbole (todas as citações deste parágrafo são tiradas desses dois verbetes).

24 R. E. GIESEY, Le roi ne meurt jamais. Les obséques royales dans la France de la Renaissance, Paris, Editions Flammarion, 1987, pp. 137-145, " Effigie, representation et image" (tr. fr. de The Royal Funeral Ceremony in Remaissance France, Geneve, Libraire Droz, 1960, pp. 85-91).

25 A. ARNAULD e P. NICOLE, La logique ou l'art de penser,Paris, Presses Universitaires de France, 1965. Sobre a teoria do signo em Port-Royal, ver o estudo fundamental de L. MARIN, La Critique du discours. Etude sur la Logique de port-Royal et les Pernées de Pascal, Paris, Les Editions de Minuit, 1975.

26 A. ARNAUD e P. NICOLE, op. cit., Livro I, capítulo IV, pp. 52-54. para uma discussão sobre a definição do simbólico, ver a série de artigos publicados no Joumal of Modem History após a publicação do livro de R. DARNTON, The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History,New York, Basic Books, 1984 (tf. fr. Le grand massacre des chats. Attitudes et croyances dans l'ancienne France, Paris, Editions Robert Laffont, 1985): R. CHARTIER, "Texts, Symbols and Frenchness", Joumal of Modern History, 57,1985, pp. 682-685, R. DARNTON, " The Symbolic Element in history", Joumal of Modern History, 58,1986, pp. 218-234, D. LACAPRA, " Chartier, Darnton and the great Symbol Massacre", Joumal of Modern History, 60, 1988, pp. 95-112 e J. FERNANDEZ," Historians Tell Tales: of Cartesian Cats and Gallic Cockfights", Joumal of Modern History,60, 1988, pp. 113-127.

27 A. ARNAUD e P. NICOLE, op. cit., Livro II, capítulo XIV, pp. 156-160.

28 PASCAL, Pensées, 104, in Oeuvres complètes, Paris, Editions Gallimard, "Bibliothèque de la Pléiade", 1954, p. 1118. (Trad, de Sergio Milliet, citada)

29 LA BRUYERE, Les caractères, Paris, Garnier-Flammarion, "Du mèrite personnel", 27, pp. 107-108.

30 N. ELIAS, La Dynamique de l 'Occident, Paris, Calmann-Lévy, 1975, " Esquisse d'une théorie de la Zivilisation", pp. 187-324 (tr. fr. de Über den Prozess der Zivilizations, Soziogenetische und psychqgenetische Untersuchungen, Bern, Verlag, Francke AG, 1969, et Francfort-sur-e-Main, Suhrkamp, 1979, vol. II," Entwurt zur einer Theorie der Zivilization").

31 L. W. LEVINE, Highbrow-Lowbrow. Tje Emergence of Cultural Hierarchy in /America, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1988, pp. 11-81.

32 M. FOUCAULT, L 'Orare du discours, op. cit., p. 54.

33 N. ELIAS, La societé de cour, Paris, Editions Flammarion, 1985, pp. 108-110 (tr. fr. de Die höfische Gesellschaft. Untersuchungen zur Soziologie des Königstums ind der höfischen Aristokratie mit einer Einleitung: Soziologie und Geschichtswissenschaft. Damstadt-Neuwied, Luchterhand, 1969).

34 R. KOSELLECK, Le règne de la critique, Paris, Les Editions de Minuit, 1979 (tr. fr. de Kritik und Krise: eine Studie zur Pathogenese der burgerlichen Welt, Friburgo, Verlag Karl Albert, 1959, e Francfort, Shrkamp, 1976).

Roger Chartier é historiador e diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.
Tradução de Andrea Daher e Zenir Campos Reis.
* Texto publicado com permissão da revista Annales (NOV-DEZ. 1989, Nº 6, pp. 1505-1520). O original em francês encontra-se à disposição do leitor no IEA para eventual consulta.

"História das Mentalidades e Micro-História"

"História das Mentalidades e Micro-História"

r Izac Evangelista - CAFÉ HISTÓRIA



Micro-história, foi e ainda é por,muitas vezes confundida com historia das mentalidades” como afirma Ronaldo Vainfas.Isso si da pela aproximação que se inscreve entre esses dois campos da historiografia,talvez por ambas serem fruto de um novo pensar historiográfico – sendo as mentalidades uma vertente historiográfica mais antiga,que remonta a March Bloch e Lucien Febvre,mas que vai reinar no cenário da historiografia,sobretudo na historiografia francesa, a partir de meados da década 1960 com os historiadores da chamada terceira geração da Escola dos Annales,também impulsionada por pensadores de outras áreas como Foucault e Lévi-Strauss.
Mas apesar de dominar o cenário da historiografia francesa nesse período em que insurge a terceira geração dos Annales, os historiadores das mentalidades, vão encarar uma serie de criticas nesse novo rumo que dão a sua pratica historiográfica,já que a mesma apresentará uma serie de imprecisões e ambigüidades,que segundo Vainfas “contribuíram para o desgaste do próprio conceito” de mentalidades.Dessa maneira,apesar de reinar a principio na historiografia francesa – também alcançando adeptos em outras partes da Europa,como também na América Latina e nos Estados Unidos – poucos historiadores franceses defendiam ou se definiam como historiadores das mentalidades,embora muitos deles continuaram a pesquisar temas ligados as mentalidades e a Nova História.
Porem, é na nova história cultural que as mentalidades irão contribuir e receber novas abordagens, novos desdobramentos,sem contudo, ser o fator determinante da pesquisa. Já que os historiadores da nova história cultural,como revela o Vainfas,não “vão negar a relevância dos estudos sobre o mental,nem tão pouco renunciar a aproximação com outras disciplinas” – destaco isso pois uma das criticas a Nova história e as mentalidades foi a de quê, se abriu demais a novos saberes e questionamentos, e teria posto em “cheque” a legitimidade da própria disciplina.
Contudo nesse novo momento,ela vai estabelecer novas maneiras de abordar e estudar a cultura,levando em consideração as contribuições dos estudos sobre representação e apropriação de Roger Chatier e de Carlo Ginzburg com seu conceito de cultura e circularidade, apresentado em seu consagrado livro de micro-história - que também é um marco da nova história cultural - “O queijo e os vermes” ,que segundo Vainfas pode ser considerado “...quase um manifesto da nova história cultural em oposição à história das mentalidades”.
É nesse contexto que encontramos o nascimento da micro-historia - e daí a confusão em distingui-la das mentalidades – pois assim como a primeira: tem e revela um apego pela narrativa,tem afinidades temáticas,estreita os laços com a antropologia; contudo, uma diferença fica clara quando nos propomos a leitura e analise de uma obra de micro-história.É a capacidade - talvez a particularidade - de dar voz aos personagens, fugindo das generalizações de muitos estudos de mentalidades, questionando conceitos como o de inconsciente coletivo – o que já havia sido contestado e reformulado por Michel Volvelle,que partindo de um viés marxista preferiu o termo “imaginário coletivo”.O historiador da micro-historia amparado nos conceitos da Nova História cultural,vai procurar fazer uma analise “microscópica” ,muito mais criteriosa,e investigativa, o que vai permiti ao historiador enxergar fatos que outrora passariam desapercebidos,não se prendendo a contextualizações ou explicações – outro ponto que a diferencia das mentalidades.
Dessa maneira em “Os protagonistas anônimos da história” podemos encontrar essa diferenciação entre micro-história e mentalidades, nas palavras do próprio Ronaldo Vainfas, que sintetiza essa questão, colocando que “(...) uma das características fundamentais da micro-história que muito a diferencia da história das mentalidades: é sua renuncia (...) a história geral, a contextualização sistemática, a explicação, a totalidade e a síntese”.
É na trama do discurso cultural que vai se circunscrever o estudo de micro-história, a exemplo do seu celebre “criador” Carlo Ginzburg em “O Queijo e os Vermes” estudando: com um enfoque “microscópico” a vida e as idéias de um moleiro interrogado e condenado pela inquisição;e é seu companheiro Giovanni Levi, também pioneiro no gênero de micro-história, quem salienta que “o principio unificador de toda a pesquisa micro-histórica é a crença é a crença em que a observação microscópica revelará fatores previamente não observáveis”,assim a micro-história ,através da narrativa de casos miúdos,expõem com muita propriedade a história para leitores especializados e não especializados.


Ver citações em
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história. São Paulo,Sp:Campus,2002.


USOS E ABUSOS DO PASSADO

A história contada pelos poderosos

Livro revela como líderes políticos manipularam fatos para tentar apagar os seus erros e construir uma imagem de herói

Natália Rangel

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O ditador russo Josef Stalin apagou arquivos oficiais, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill omitiu fatos de sua biografia política, Adolf Hitler encampou o mito nacionalista da raça ariana e o ex-presidente americano George W. Bush associou sua imagem à de um admirado chefe de Estado do passado para derrubar os altos índices de rejeição ao seu governo. A história está repleta de episódios distorcidos ou manipulados por grandes líderes políticos e alguns desses casos são analisados pela pesquisadora canadense Margaret Macmillan em seu livro “Usos e Abusos da História” (Record). O passado pode condenar e por isso tantos poderosos decidem adulterá-lo; outros preferem dar um jeito de encostar o seu nome na fama de algum antecessor. Foi esse, por exemplo, o estilo de Stalin. Ele conquistou o poder e a confiança dos russos tomando como fiador o imenso carisma de seu antecessor, Vladimir Lenin, a quem apresentava como aliado – o que nunca de fato fora. Em 2004, Bush também recorreu à gloriosa sombra do passado, enquanto sua popularidade despencava. Passou a se comparar ao ex-presidente americano Harry Truman (1945-1953), cujos desacertos iniciais na administração de conflitos (Vietnã e Coreia) lhe renderam o rótulo Errar é Truman (To err is Truman), embora a história o tenha depois redimido. Suas ações são consideradas hoje pedras fundamentais no enfrentamento da Guerra Fria. Bush busca o mesmo tipo de redenção, mas não faz referência a duas diferenças significativas: a primeira é que Truman foi um democrata; o segundo ponto é que ele atuou em todos os conflitos em sintonia com as diretrizes da ONU.

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“Lidar com o passado e decidir que versão dele se quer recordar
ou se deseja esquecer pode ter um preço político muito alto”
Margaret Macmillan, autora do livro “Usos e Abusos da História”

O admirado premier Winston Churchill omitiu episódios que não lhe convinham (sua desastrosa atuação no conflito envolvendo a disputa do estreito de Dardanelos, durante a Primeira Guerra Mundial) e tergiversou sobre o fato de, no ano da tomada da França pelos nazistas (1940), ter negociado um acordo de paz com a Alemanha por intermédio do líder fascista Benito Mussolini. Churchill sempre negou ter existido essa secreta reunião que mais tarde foi revelada. Muitas vezes, a onipotência dos líderes os leva a tentar reescrever a história de suas nações. O revolucionário Robespierre, na França, e o sanguinário ditador Pol Pot, no Camboja, cada um a sua maneira, foram radicais na reforma da história de seus respectivos países – e decidiram criar um novo “Ano Zero” em seus calendários. Mao Tsé-tung incentivou os jovens guardas vermelhos a destruir objetos que remetiam ao passado imperial e a matar professores e intelectuais que pudessem transmitir essa cultura às novas gerações.

Entre os russos há uma antiga anedota que diz: “A Rússia é o único país cujo passado é imprevisível.” Stalin providenciou para que todas as referências ao seu inimigo Leon Trotski fossem apagadas dos arquivos soviéticos e Nikita Kruchev fez o mesmo em 1954 com a biografia e os registros oficiais de um poderoso chefe de segurança que trabalhara para Stalin. Em anos mais recentes, o presidente russo Vladimir Putin demonstrou estar afinado com seus antecessores. Ele defendeu que os livros didáticos possuam um conteúdo “patriótico” e apresentem uma nova visão de Stalin. Segundo ele, Stalin foi um ditador, mas isso teria sido “necessário” naquele momento para “salvar a Rússia” de seus inimigos. E justificou: “A democratização não era uma opção viável.”

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Leia um trecho da introdução do livro “Usos e abusos da história”, de Margaret MacMillan :

Todos nós fazemos história, mesmo que como aquele homem que descobriu que escrevia em prosa, nem sempre nos tenhamos dado
conta de ter essa capacidade. Queremos dar sentido às nossas vidas e muitas vezes nos perguntamos qual o lugar que ocupamos na sociedade em que vivemos e como chegamos até ele. Com isso, criamos histórias sobre nós, nem sempre verdadeiras, na tentativa
de buscar respostas satisfatórias. Tais histórias e questionamentos inevitavelmente nos levam ao passado. Como foi que cresci e me
tornei a pessoa que sou? Quem foram meus pais? Meu avós? Ainda que, de maneira parcial, como indivíduos sejamos todos produtos
de nossa própria história, o que inclui nossa origem geográfica, nossa época, nossa classe social e o histórico de nossas famílias.
Nasci e fui criada no Canadá, onde desfrutei um período extraordinário, raro na maioria dos lugares, de paz, estabilidade e prosperidade.
Com certeza isso teve influência na construção da forma pela qual desenvolvi minha visão de mundo, talvez com mais otimismo sobre a melhoria das condições de vida do que se eu tivesse crescido no Afeganistão ou na Somália. Além disso, sou produto da história de meus pais e de meus avós. Cresci com algum conhecimento, embora incompleto e fragmentário, sobre a Segunda Guerra Mundial, na qual meu pai lutou, e sobre a Primeira Guerra Mundial, que levou embora meus dois avós.
Usamos a história para entender a nós mesmos e devemos usála para compreender os outros. Se tomarmos conhecimento de que
alguém conhecido passou por uma catástrofe, tal informação nos ajudará a evitar que lhe causemos mais sofrimento. (Se, por outro
lado, descobrimos que ele tirou a sorte grande, isso poderá afetar a maneira como o trataremos daí em diante!) Não devemos supor
que somos todos iguais, e isso serve tanto para nossa atuação nos negócios ou na política quanto nas relações pessoais. Como nós,
canadenses, poderemos entender os sentimentos quase sempre apaixonados dos nacionalistas franceses de Quebec se não soubermos algo acerca do passado em que foram, e ainda são, moldadas suas atitudes, com as lembranças da conquista pelos ingleses em 1759 e a impressão de que seus descendentes de língua francesa são cidadãos de segunda classe? Ou a mistura de ressentimento e orgulho que muitos escoceses têm em relação à Inglaterra agora que a Escócia encontrou petróleo? Se não soubermos nada sobre o que as perdas da Guerra Civil e a reconstrução significaram para os brancos do Sul dos Estados Unidos, como poderemos entender o que sentem em relação aos ianques até hoje? Sem conhecer a história da escravidão e da discriminação, da violência sofrida pelos negros mesmo depois da abolição, não podemos compreender a complexidade da relação