Um artigo do sobre o valor da liberdade.
“Liberté, Égalité e Você”
por Marcos Sá Corrêa
Enfim, ninguém mais precisará pegar em armas para invadir Versalhes.
Nem tudo na vida desce melhor em francês. Às vezes a língua faz de tudo para facilitar as coisas. Usa, por exemplo, a mesma palavra para falar de residências aristocráticas, sedes de governo, hospitais ou hospedarias. Mas no mês passado a notícia de que em Versalhes o velho Hôtel du Grand Contrôle está virando o novo Hôtel de l’Orangerie só faltou entalar na garganta de Jean-Jacques Aillagon, que administra o -palácio, o museu e o parque desertado pela realeza em outubro de 1789.“É uma iniciativa pioneira”, declarou Aillagon na entrevista coletiva que anunciou a locação do prédio histórico à Ivy International, uma empresa belga. Pioneira, mas não revolucionária. Espanha e Portugal, desde a década de 40, alugam quartos em conventos, castelos e outras relíquias de seu patrimônio público, confiando sem maiores cerimônias à iniciativa privada a gestão dos paradorese pousadas oficiais.E agora a França entra na roda com um vasto acervo de tesouros, que inclui as muralhas medievais de Carcassonne, ao norte dos Pireneus, e o castelo de -Saint-Cloud, nas margens do Sena. Só não dá para sonhar com uma noite na Bastilha, em Paris, porque tão logo o povo tomou a prisão, o especulador imobiliário Pierre-François Palloy, “o Patriota”, arrancou do comitê revolucionário uma licença para demoli-la.A conversão do Hôtel du Grand Contrôle em Hôtel de l’Orangerie é só o primeiro passo de uma revolução na hotelaria francesa. Mas nem isso poupou Aillagon da ferroada do Libération. Os franceses já sabiam há muito tempo que o administrador de Versalhes era “um tantinho provocador, mas não a tal ponto”, comentou no dia seguinte o jornal fundado pelo filósofo Jean-Paul Sartre. Referia-se à estreia de Aillagon na vida pública, oito anos atrás, comunicando ao país, como ministro da Cultura e da Comunicação, que na vida privada continuaria homossexual.No caso do Grand Contrôle, o administrador bem que tentou ficar na defensiva. Alegou que o edifício construído em 1684 para um duque e tomado em 1720 de uma agiota holandesa estava em petição de miséria. Literalmente, “desbeiçado”, depois de uma longa ocupação pelo Ministério da Guerra, que o usou desde o século XIX como repartição militar sem jamais consertar o que o tempo ia limando.Seu saguão está interditado porque o teto caiu sobre a escadaria. A capela, em ruínas. As paredes, nuas e vergadas. As vigas, bichadas. O terraço, tão cheio de infiltrações que a chuva cascateia pelos andares abaixo. Mas o prédio é tombado como monumento nacional. Mesmo sem integrar, no sentido estrito, o Palácio de Versalhes, na prática tem passagem direta para seus pavilhões e acolheu no passado inquilinos ilustres, como o ministro das Finanças Anne Robert Jacques Turgot.Turgot tentou, pela reforma econômica, livrar a França da ruína e, por tabela, Luís XVI da rota de colisão com o fio da guilhotina. Mas não emplacou dois anos no posto de tesoureiro-mor daquela corte perdulária. O cargo Grand Contrôle, apesar do nome presunçoso, passou à posteridade como símbolo do grande descontrole financeiro que roeu o Antigo Regime. E o palácio de tijolos vermelhos, com 1 700 metros quadrados de área semidestruída e decoração interna reduzida a duas chaminés, nunca mais voltou a ser a sombra do que era.Terá agora que melhorar muito para ser o hotel “de charme” que prometem seus arrendatários. Até reabrir as portas, em janeiro do ano que vem, passará por uma reforma em regra. A obra, orçada em qualquer coisa entre 5,5 e 7 milhões de euros (ou, por alto, de 12 a 16 milhões de reais), custaria mais do que o governo francês está disposto a desembolsar.Tratava-se, portanto, de “salvá-lo”, disse Aillagon. E salvá-lo de maneira “distinta, porque ele está realmente plantado no cenário nobre, mesmo se não está no jardim”. O forte do hotel, mesmo antes da reforma, são as janelas de seus 23 apartamentos, debruçadas sobre os laranjais de Luís XIV, que lhe deram o nome de “l’Orangerie”.[Image]Ele dá vista também para os espelhos d’água do lago ornamental suíço e, ao fundo, os bosques das antigas reservas de caça onde Luís XVI, perseguido desde a juventude pela má fama de casto e misógino, esmerava-se em provar à corte que dava no couro de javalis e cervos. Tudo isso a menos de 20 quilômetros de Paris. É um privilégio real, embora não chegue a ser exclusivo. Do outro lado do parque, o Trianon Palace, da cadeia Waldorf Astoria, oferece mais ou menos o mesmo panorama, só que virado pelo avesso.Inigualável mesmo, no Hôtel de l’Orangerie, é a vizinhança. Não exatamente a dos turistas que fazem fila na porta do palácio, às vezes em multidões tão compactas que dariam para começar a Revolução Francesa outra vez. Luís XVI fugiu de menos gente do que Versalhes recebe atualmente num dia de boa visitação. O que importa nele é ficar tão perto da extravagância rococó que, livre da dinastia Bourbon e incorporada pela Unesco ao patrimônio artístico da humanidade, deixou de parecer insolente para se tornar nostálgica.O hotel fica no cinturão de ruas que costeiam o palácio. Faz parte de sua história. E dormir lá é praticamente dormir em Versalhes, sem os inconvenientes encarados pelos forasteiros que, no século XVIII, com a realeza em casa, conheceram a corte nos bons tempos. Apesar do luxo ostentatório, os padrões da hospedagem no palácio sempre estiveram abaixo da categoria cinco estrelas.Que o diga o escritor inglês Horace Walpole. Ele andou por ali no apogeu do absolutismo. Com faro aguçado de historiador da arte e o nariz empinado de 4º conde de Oxford, ele fez um retrato impiedoso da vida cotidiana no palácio: “O mau cheiro se agarra nas vestes, perucas e até roupas de baixo. E, o que é pior, mendigos, empregados e visitantes aristocráticos indistintamente usavam as escadas, os corredores e qualquer lugar menos acessível para se aliviar.”Faltavam banheiros para os 5 mil hóspedes de Versalhes. Fazia parte do serviço de quarto uma equipe encarregada de recolher urinóis nos corredores toda manhã. Na falta desse requinte, o remédio era recorrer ao parque, aos jardins e às aleias do pátio. Até a futura rainha Maria Antonieta, parada diante de um relógio de sol, tomou sem querer um banho de líquido suspeito, despejado do alto de uma janela por mão anônima.Havia gente demais e privacidade de menos na Versalhes de Luís XVI. Entrava no palácio qualquer um, fora os infectados por varíola. Bastavam na época o chapéu e a espada para credenciar um fidalgo. E, na pior das hipóteses, a portaria alugava chapéus e espadas. Quase nas portas do palácio, o livreiro Lefèvre oferecia folhetos pornográficos em que figurava com destaque a lésbica Toinette (ou seja, Toninha). Ela lembrava, sem tirar nem por, a rainha Maria Antonieta.Desses excessos da monarquia os hóspedes do Hôtel de l’Orangerie estarão livres. Da revolução para cá, a liberdade e a fraternidade ficaram cada vez mais ao alcance de todos que possam pagar uma diária estimada em, pelo menos, 500 ou 600 euros. Em bom português, cerca de 1 200 ou 1 440 reais. Fora os extras.
FONTE:http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-53/chegada/liberte-egalite-e-voce
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