segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Robespierre na Convenção: revolução, política & moral

Robespierre na Convenção: revolução, política & moral

Daniel Aarão Reis Filho

A Revolução Francesa, desde quando aconteceu, até os dias de hoje, tem sido um objeto maior de disputa na sempre áspera luta pela apropriação e veiculação da memória. Não há consenso, nunca houve, nem provavelmente haverá, em torno do exato significado deste processo histórico, nem a respeito das fases através das quais se desenrolou, e se propagou, das luzes e das trevas de cada momento, do valor dos programas, do alcance das decisões.
O mesmo se aplica em relação às lideranças, às personas, que exprimiram vontades, aspirações, interesses, sonhos e delírios. Impossível se chegar a um acordo unânime a propósito de Robespierre, Danton, St. Just, Mirabeau, Marat, La Fayette, Carnot, Brissot, Bonaparte, Babeuf, entre tantos e tantos outros. Dependendo da perspectiva do intérprete, de seus próprios sonhos e delírios – e de seus interesses – liberticidas aparecerão como libertadores, tiranos, como justos, moderados, como revolucionários, revolucionários, como tresloucados utópicos. Nas batalhas historiográficas, intermináveis, sempre renascentes, nunca será possível distinguir o joio do trigo, porque nas arenas em que se travam estes enfrentamentos não há joio, nem trigo, há ângulos de análise, cujos fundamentos é recomendável esclarecer, da melhor forma possível, de modo que a crítica possa se constituir e se exprimir. E escolher.
Se estas preliminares são aceitáveis, talvez seja necessário formular um primeiro reparo a propósito deste livro que tem a qualidade de reunir e apresentar ao público brasileiro doze discursos de Maximilien de Robespierre feitos, entre dezembro de 1792 e julho de 1794, perante a Convenção, reconhecida então como representação máxima do poder político revolucionário [Maximilien de Robespierre: discursos e relatórios na Convenção. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Apresentação de João Batista Natali. Rio de Janeiro, Ed. Contraponto, 2000].
Não teria sido o caso de explicitar melhor os critérios da edição, indo mais além do que foi a apresentação, sem dúvida simpática ao personagem, assinada por João Batista Natali? O que se deseja exatamente com a publicação destas excelentes fontes para o estudo da história da revolução francesa? Apenas ofertar um conjunto de documentos de inegável valor? Já seria um mérito, mas esgota-se aí o escopo da publicação?
O mesmo comentário poderia aplicar-se às notas que precedem cada discurso e à cronologia. Tudo é muito sumário. Não se esclarece de modo suficiente o contexto histórico dos diversos discursos, as referências neles contidas tornam-se muitas vezes obscuras, mesmo para especialistas, e, sobretudo, não se percebem as controvérsias que acompanharam Robespierre desde os diversos momentos em que ele pronunciou os discursos publicados. Resultam daí dificuldades para que se forme uma avaliação crítica mais bem fundamentada do papel, do alcance e das contradições deste modesto advogado provinciano, nascido em Arras, em 1858, e que foi propulsado, pela dinâmica da revolução, em 1793, quando tinha 35 anos de idade, ao centro da cena política, tornando-se temido e odiado, reverenciado, glorificado e difamado, para ser, pouco mais de um ano depois, em julho de 1794, guilhotinado em praça pública sob os aplausos das multidões.
A trajetória de Robespierre seria um enigma fora do contexto da radicalização geral da revolução francesa, das ameaças mortais que sobre ela pesavam, em virtude da coligação internacional de forças que se desencadeava contra suas propostas e perspectivas. Em especial, a sorte do personagem esteve vinculada ao processo da plebe sans-culotte insurreta de Paris. Sua ascensão é ritmada pelas febres desta plebe, ou seja, pela agressividade com que ela se lançou à luta política, tornando-se, muito rapidamente, e de modo imprevisto, um ator de primeiro plano. Robespierre soube interpretar a cólera, os interesses e os ressentimentos destas gentes obscuras e desprezadas. Por isso mesmo transformou-se num homem todo poderoso. Mas não soube interpretar o alcance e a consistência do ímpeto que o levou a alturas inimaginadas, inimagináveis. Na guilhotina, segundo os termos do seu último discurso, formulado na véspera da execução, deve ter responsabilizado pela sua perda um punhado de traidores e sacripantas viciosos. Mas a população cujas palmas agora decoravam seu momento final não fora a mesma que o elevara ao poder e à glória?
Que nos dizem os discursos de Robespierre? Sem pretender esgotar o assunto, coisa de resto impossível no presente texto, duas dimensões se abrem à reflexão: a política e a dos valores.
Do ponto de vista político, nosso herói apresenta análises, diagnósticos e propostas concretas, visando a economia e o poder.
Num discurso pronunciado em 2 de dezembro de 1792, fala contra a liberdade desabrida do comércio e pela regulamentação da distribuição de gêneros de primeira necessidade. E diz: "Nenhum homem tem o direito de acumular montes de trigo ao lado de um semelhante que morre de fome". E escande perguntas, que ele mesmo responde: "Qual é o primeiro objetivo da sociedade? Manter os direitos imprescritíveis do homem. Qual é o primeiro desses direitos? O de existir." Denuncia a especulação mercantil como uma pilhagem e um fratricídio e defende uma legislação que assegure a todos os membros da sociedade o gozo da porção dos frutos da terra necessária à sua existência.
Em dois outros discursos, sobre a nova Constituição, republicana e igualitária, a Constituição do Ano I (1792/1793), formulada como alternativa à aprovada em 1791, monarquista e liberal, Robespierre aprofundará suas concepções e propostas.
No primeiro, de 24 de abril de 1793, defenderá a noção da Terra como patrimônio e morada do gênero humano. Reconhecendo que "a igualdade dos bens é uma quimera" , denuncia ao mesmo tempo a desigualdade das fortunas, "fonte de muitos males e de muitos crimes". E propõe a idéia de que a "sociedade é obrigada a prover a subsistência de todos os seus membros, seja fornecendo-lhes trabalho, seja garantindo os meios de subsistir àqueles que estão impossibilitados de trabalhar". Segue-se uma proposta de Declaração dos Direitos, plasmada em 38 artigos, onde, entre outros princípios, se estabelece a limitação do direito de propriedade, considerada nociva quando prejudica os direitos de outrem, ou a segurança, a liberdade, a existência e a propriedade dos semelhantes (artigos 7 e 8). Na mesma proposta, consagra-se o direito à rebelião contra governos e leis que oprimam os cidadãos.
Num segundo discurso, menos de um mês depois, em 10 de maio de 1793, objetivará a organização do poder político, propondo, entre outras medidas, mandatos eletivos curtos, de dois anos, limitação obrigatória de funções a serem exercidas por cada representante, responsabilização e revocabilidade dos funcionários, em todos os níveis, publicidade das operações ou das deliberações do governo ("a publicidade é o apoio da virtude, a salvaguarda da verdade, o terror do crime, o flagelo da intriga"), a prestação de contas, "exata e circunstanciada", a remuneraçao do mandatário, de modo a permitir que os mais pobres também pudessem ser eleitos.
Nestes discursos, aparece o Robespierre político. Em muitos aspectos, um precursor. Estão aí, algumas vezes ainda toscamente formuladas, outras, de modo bem explícito, as noções que levarão, muito mais tarde, aos Direitos Sociais e à radicalização do conceito de democracia. Quantas sociedades, ainda hoje, mal ouviram falar destas idéias, ou se ouviram, mal conseguem transformá-las em leis, ou em práticas?
Entretanto, como foi referido, há uma outra dimensão, a dos valores, e ela cresce de importância na medida em que o processo histórico se radicaliza. No que se refere a Robespierre, na medida em que ele ascende ao centro e à cúpula do poder.
Nesta dimensão há um ponto forte, recorrente, quase obsessivo: a idéia de que o povo pobre é bom. A plebe é boa. Confiante, generosa. Diz ele, em discurso de 2 de dezembro de 1792: "o povo é naturalmente reto e pacífico, sempre guiado por uma intenção pura". Mais tarde, no discurso já citado, de maio de 1793, ele dirá que os pobres e os eleitores são generosos, dedicados, corajosos, magnânimos. Em oposição, formando um contraste, os ricos e os mandatários são avarentos, traidores, egoístas, pérfidos e covardes. De um lado, os representados são a verdade, a pureza, a honestidade. De outro, os representantes são a mentira, a baixeza, a vilania.
Robespierre aprecia as polarizações bem nítidas. De um lado, do lado do povo, os princípios, o interesse geral, os direitos e as necessidades dos fracos. De outro, do lado dos que mandam, os preconceitos, o egoísmo e o orgulho e as paixões dos poderosos. A luta da virtude contra o vício. Da moral contra o egoísmo. Dos princípios contra os hábitos. Da altivez contra a insolência. Da grandeza de alma contra a vaidade. Do amor à glória contra o amor ao dinheiro. Da honestidade contra a corrupção. Em vez da boa companhia, a boa gente. Em vez dos tédios da volúpia, o encanto da felicidade. No lugar da pequenez dos grandes, a grandeza do homem, em suma, como alternativa a todos os vícios e ridículos da Monarquia, todas as virtudes e todos os milagres da República.
Do lado de todas as virtudes, o povo bom. Do lado de todos os vícios, os poderosos maus.
Mas como explicar que um povo bom possa eleger e aturar mandatários tão vis? É o engano, o responsável. A falsidade, a mentira, que se esconde quase sempre atrás de máscaras, que é preciso fazer tirar. E das palavras, que, como se sabe, conduzem os tolos e os ignorantes.
Não é fácil combater o vício com a virtude, porque, segundo Robespierre, as virtudes são simples, modestas, pobres, freqüentemente ignorantes, por vezes, grosseiras. Já os vícios "têm todos os tesouros, se armam dos encantos da volúpia e dos engodos da perfídia. E são escoltados por todos os talentos perigosos usados para o crime".
Há uma busca ansiosa pelo Absoluto em Robespierre: a vontade geral, a razão universal. Não gratuitamente ele dedicará todo um discurso sobre os princípios de moral que devem guiar a Convenção Nacional, em 5 de fevereiro de 1794; um outro, sobre as relações das idéias religiosas e morais com os princípios republicanos, de 7 de maio do mesmo ano. E lutará para instaurar um novo culto, o do Ser Supremo, onde sua própria figura surgirá como uma espécie de sumo pontífice.
Aqui já não se está mais no território da política, das propostas que se podem discutir e emendar, ou simplesmente reprovar. Os argumentos são substituídos pelas provas. Na órbita dos valores, há o mundo das virtudes e o dos vícios. Uns precisam ser exaltados, os outros, condenados.
Na última etapa de sua trajetória, Robespierre começou a ver o vício por todos os cantos, o lamaçal transbordava, porejava. A contra-revolução estava em toda a parte. Na administração das finanças, em todas as partes da economia, seus cúmplices haviam tomado o centro do poder executivo, dominando os gabinetes do Comitê de Segurança Geral e se infiltrando já no Comitê de Salvação Pública. A solução era depurar tudo, intensificar o Terror.
Robespierre apresentou esta proposta, mas pressentiu que não seria aprovada. Seu último discurso tem um tom de testamento: onde não é mais possível defender a inocência oprimida, valerá a pena viver? E faz uma última melancólica pergunta: o que se pode objetar a um homem que tem razão, e que sabe morrer por seu país? Morreu, sem dúvida, por suas idéias, e sobretudo por seus valores.
Nestes tempos indecisos em que vivemos, de virada de séculos, os discursos de Robespierre têm atualidade e abrem duas veredas: a da política, que por mais radical, é sempre relativa, e a dos valores, tendencialmente absolutos. A da política faz refletir sobre os caminhos e os descaminhos da Democracia e do Estado do Bem-Estar Social. A dos valores abre o abismo dos desencontros entre as revoluções e seus supostos destinatários.
O apresentador dos discursos afirma que ler Robespierre é deixar-se seduzir. Contudo, estes discursos precisam ser lidos com atenção, cuidados e espírito crítico. Sobretudo, e ao contrário de Robespierre, em relação àquilo em que se acredita.

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Daniel Aarão Reis Filho é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense. http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv128.htm

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